sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Trilhos da paulicéia

São Paulo é uma cidade tão cruel, muitas vezes, que até priva seus pobres habitantes de algumas pequenas felicidades momentâneas. Andar de trem é uma delas.
Dia desses deixei o carro em casa e fui de trem. Sim, o bom e velho ferrocarril, o monstro de ferro que desbravou os campos e trouxe o progresso, o comboio dos operários da periferia, o prosaico e eficiente transporte ferroviário.
Depois de uma caminhada saudável cheguei à Estação da Cidade Universitária, às 7h da manhã, para embarcar em direção ao trabalho. Imediatamente me lembrei das minhas andanças em Berlim, quando ir da Zoologischer Garten Hauptbahnhof até a estação de Ostkreuz era parte do prazer de viajante mochileiro. Sem dúvida nenhuma que o trem de subúrbio é o mais cosmopolita dos transportes, ao lado do metrô. Tirando o fedor do Rio Pinheiros e a endêmica feiura paulistana, o trem mantém seu charme. É claro que não estamos em Berlim ou Paris. Mas eu já tinha me esquecido de um prazer que eu cultivava desde a infância. Andar de trem sempre foi uma das minhas predileções.
É tão irritante saber que, um dia, interesses econômicos e a estupidez política decidiram que o transporte rodoviário e a cultura do carro seria o foco do nosso "desenvolvimentismo". Ao invés de avenidas horrorosas ao lado de rios e mananciais poluídos no nascedouro teriamos parques, e talvez trilhos. São Paulo sempre dá a impressão de ser uma cidade que poderia ter sido e nunca será.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Joaquim Maria, o sempre atual, manda lembranças

Falar de Machado de Assis sem cair no clichê é tarefa difícil., .
Mas, nunca é demais reforçar que, parafraseando em parte Luiz Inácio , "Nunca na história desse país" a nossa elite senhorial iria ter uma radiografia tão criticamente bem feita que, de tão bem desenhada, ela mesma não seria capaz de enxergar-se. Machado escrevia para quem tinha olhos abertos, mas os cegos e míopes podiam lê-lo sem maiores traumas existenciais.
Não deixa de passar pela nossa cabeça como seria o quadro social dessa nossa elite de início do século XXI (cada um tem a que merece) descrita por Machado. Nosso tempo do consumo, da sociedade do espetáculo, do vício tecnológico, do capitalismo pujante vizinho desavergonhado da alarmante miséria, da guerra social e da violência, das mulheres e homens coisificados. É um exercício quase delicioso, e não menos tétrico, imaginar tudo isso visto pelas lentes machadianas. Bacharéis e sinhazinhas do século XXI provavelmente comprariam o livro do escritor ao vê-lo na lista dos mais vendidos na Revista Veja, da qual são assíduos leitores, sem atentar para o fato de que suas próprias caricaturas sociais estão impressas em sofisticada escrita.

O mulato Joaquim morreu em 29 de setembro de 1908, tendo sido identificado como branco em seu atestado de óbito. Ele se adaptaria facilmente ao nosso tempo em que ser mulato é cool
  • Toda a obra de Machado na internet. Enjoy

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O mercado "nervoso" ou engasgos do neoliberalismo

No já clássico "A Era dos Extremos: O breve século XX", Eric Hobsbawn afirma que, com certeza, sem o colapso econômico do entre guerras, fruto do crash na bolsa norte-americana em 1929, não teria havido Hitler. E quase certamente não teria havido Roosevelt.
Mesmo com uma certa resistência às versões "da história que poderia ter sido", não há como afirmar que a crise do liberalismo, que acentuou o fascismo e desembocou na guerra mais mortífera da história, não tenha surgido do rastro daquele dia fatídico. O capitalismo da alta roda sentiu o frio na espinha, financistas estouraram os miolos e o mundo adentrou num túnel negro que só terminaria após o fim da guerra.


Usando as palavras do próprio historiador britânico: "As operações de uma economia capitalista jamais são suaves, e flutuações variadas, muitas vezes severas, fazem parte integral dessa forma de reger os assuntos do mundo"(A Era dos Extremos, pag. 91). "Essa forma de reger os assuntos do mundo" dá mais um sinal de sua essência auto-destrutiva. Nada mais exemplar do que a última segunda-feira, quando a concordata do Lehman Brothers, o 4º maior banco de investimento dos EUA, afundou os mercados. Arautos do mundo financeiro apressaram-se em dizer que essa é a pior crise desde a fatídica quinta-feira de 1929. O neoliberalismo já está em crise, isso é fato, embora o mundo do pragmatismo prefira disfarçar a doença terminal. Mas se a história pudesse se repetir literalmente, de onde viriam os novos Hitler e Roosevelt? Só há uma certeza. Em tempos de ações em baixa e economia em recessão, liberais de carteirinha perdem a língua e "apelam" ao Estado, esse inimigo do indivíduo e do livre-mercado. Passada a crise (se passar), como é de praxe, o Estado será culpado por ela e os especuladores de Wall Street serão apenas "o efeito colateral" da natural ordem do mercado.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O começo do fim em 2001

Nenhuma propaganda anterior aos ataques do 11/09, anunciando um mundo aparentemente pleno de felicidade com avanços tecnológicos, da internet, do fim das guerras ideológicas entre o socialismo real e o capitalismo (com a "vitória" inegável do segundo) e globalização à caminho do progresso teve o poder de eficácia da imagem dos dois aviões seqüestrados atingindo em cheio dois ícones do poder financeiro. Em poucas horas, o planeta parecia estar sendo despertado do torpor da aparente bem-aventurança linear do século XXI por uma nuvem de poeira com cheiro de querosene, entulho e carne calcinada.

Os ataques do 11 de setembro não deixaram somente um buraco no Marco Zero. Criaram um ponto de interrogação gigantesco a respeito dos futuros embates que nos restam. Se os Estados Unidos puderam viver uma hegemônia realmente plena, ela se estendeu da queda do Muro de Berlim até aquela fatídica manhã novaiorquina de aviões seqüestrados. A História já demonstrou mais de uma vez que o que vem do lado oriental é o que sempre surpreende, como uma manhã que nasce antes da hora.

A reação doméstica:


terça-feira, 9 de setembro de 2008

"Oye, una fresa! hoy es mi dia de suerte!"

A popularização do DVD tornou possível encontrar alguns títulos da cinematografia mundial que não se encontrariam tão facilmente há uns 3 ou 4 anos atrás por ai. Nessa leva, vasculhando as baciadas das lojas de departamentos, consegui trazer "Morte e Veneza" de Visconti, "Plata Quemada" de Marcelo Piñeyro, "Guerra e Paz" com Audrey Hepburn, entre outros títulos para minha coleção pessoal. Tudo bem que hoje em dia é fácil baixar o que se queira via torrent, mas nada como um filme a preço acessível, com capa ilustrada, extras e legendas já organizadas.
Minha última boa surpresa dessa leva foi "Morango e Chocolate" do celebrado diretor cubano Tomáz Gutièrrez Alea, com Jorge Perugorría, Vladimir Cruz e Mirta Ibarra. Eu tinha esquecido o quanto o filme era tão degustativo. Mais do que uma película sobre a amizade, as idiossincrasias ideológicas de um regime socialista e a homossexualidade sob o comunismo (condição pária em qualquer regime político, pelo menos até hoje), "Morango e Chocolate" é um brinde à cultura cubana. Principalmente ao apreço à cultura e à intelectualidade, suprimida em alguma instância pela realidade política. O Diego de Jorge Perugorría é a própria celebração dessa Cuba de Marti, Lezama Lima, Reinaldo Arenas.



Infelizmente a capa do DVD traz indicações pouco aprofundadas a respeito do filme. "Morango e Chocolate" não é uma comédia saborosa ao gosto latino, como os jornais norte-americanos anunciaram. Mais do que isso, é um retrato fiel e justo de um país cheio de riqueza intelectual, às voltas com a situação de penúria financeira provocada pela fidelidade a um modo de vida socialisa em um cenário neo-liberal pouco simpático. Fidelidade cujo custo são as liberdades individuais. Mas não há como reconhecer, na criativa vida de Diego e em sua fala sedutora, toda a espontaneidade que é impossível de se ocultar. Quem não viu, veja

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Do Estado Novo ao Fim da Guerra Fria em uma entrevista

Disponível facilmente no Youtube uma entrevista da historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, que nasceu em uma das muitas prisões da Gestapo em Berlim. Um pouco do nazismo, o Brasil do Estado Novo, a trajetória de Prestes e os lances políticos mais importantes do Brasil dos últimos 60 anos. Uma produção da TV Câmara

domingo, 15 de junho de 2008

Uma foto e seu comentadores

Quando o desenvolvimento da indústria da internet possibilitou que mais e mais usuários produzissem o seu próprio conteúdo, houve uma série de consequencias curiosas. Do lado mais reacionário dessa pequena revolução, uma boa parte das pessoas já acostumadas a consumir informação pela web, algo agora corriqueiro, acharam ruim que não houvesse um filtro para opiniões postadas. Outros grandes veículos da mídia chegaram a considerar a opinião de blogueiros e afins algo completamente sem valor. Na outra ponta, aqueles que comemoraram a liberdade da própria produção da informação e os que abusaram disso.

Do meu ponto de vista a coisa mais interessante a ser analisada são os comentários a respeito de algo postado na internet, como um vídeo ou uma foto histórica. O exemplo abaixo, uma foto de um garoto negro tirada pelo fotógrafo John Vachon em Cincinnati, Estados Unidos, revela a riqueza de um artefato histórico. Uma foto belíssima, que em seu título deixa transparecer o imaginário de uma época e em seus comentários revela a importância da eterna discussão envolvendo a temporalidade das opiniões.

Clique na foto para ver os comentários ou talvez contribuir com suas reflexões a respeito:

sexta-feira, 9 de maio de 2008

História pela web: fotos que antigas que todos adoramos

Faz algum tempo que o Flickr anunciou um projeto chamado Bens Comuns, em que se pretende divulgar os tesouros fotográficos escondidos em coleções públicas mundo afora. Para quem trabalha com análise de imagem, uma boa fonte de arquivos a serem explorados visualmente e com fácil acesso. E para quem gosta de ver, simplesmente o puro deleite . Segue uma mostra com fotos da década de 30 e 40, coloridas, mostrando o cotidiano de trabalhores negros norte-americanos:


Esperemos por coleções européias, asiáticas e norte-americanas.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Judeus da caatinga e do agreste

Assisti por esses dias, pela primeira vez, o documentário "A Estrela Oculta do Sertão", dirigido pela fotógrafa Elaine Eiger e pela jornalista Luize Valente. O filme trata da questão da permanência de costumes judaicos entre algumas famílias católicas do sertão nordestino. Esses resquícios da hábitos religiosos, originários da identidade cripto-judaica de boa parte da população nordestina, já foi tema de alguns estudos. Eu mesmo já havia tido contato com alguns material sobre a questão ao escrever uma monografia sobre a presença judaica no Recife durante a ocupação holandesa.

Um filme bem interessante, que através de uma espécie de arqueologia cultural, recolhe alguns resquícios de hábitos que para mim, de família nordestina, não pareciam ter qualquer relação com qualquer matriz judaica. A produção contou com o apoio da professora da USP Anita Novinsky, talvez a maior especialista sobre este tema no mundo.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Starbucks na cafelândia...

"É proibido proibir

Lamento dizer não a Maomé
É proibido proibir
Queremos tomar café"

Esse era o refrão do samba-enredo da ACS ESM Camisa Verde e Branco, tradicional escola de samba do paulistaníssimo bairro da Barra Funda, em 1990. Tal qual outras iguarias alimentícias que serviram de tema para as agremiações de mômo, o café adentrava no rol da criatividade carnavalesca. Lembrei da música ao notar que as lojas Starbucks já dominam algumas esquinas paulistanas.

O primeiro ataque se deu nos shopping centers, onde se formaram filas e acotovelamentos por um momento de glória sorvendo um Mocha Frappuccino® blended beverage e outras bebidas. A classe média idolatrou a chegada do coffee shop mais famoso do planeta!! Pouca gente conversa, muita gente se exibe. O café não é desculpa para o papo, mas, tal qual a acumulação capitalista, tomar um café ali é um ato que gira em torno de si mesmo. E nunca esse hábito esteve tão longe da sociabilidade.
Como nem toda novidade é unânime, os cafezinhos de botequim e padaria, servidos em xícaras lascadas ou copo americano de vidro resistem impávidos. Existem diferenças no paladar, mas, a questão, sempre, é mais cultural. Há quem enxergue o artificialismo dos enlatados. Talvez o fato é que ainda somos o país do cafézinho. Hábito de longa duração.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

A longa duração...

Pode parecer lugar-comum, principalmente para os familiarizados com a História e os historiadores, escolher a temporalidade braudeliana como título desse blog. Não que eu não tenha minhas diferenças com a quase inexistência da História na longuíssima duração de Fernand Braudel.

Para os não tão familiarizados com os conceitos acadêmicos da História, "A Longa Duração" tem o simples objetivo discutir e refletir sobre os acontecimentos, atuais e passados, de maneira interdisciplinar, apresentando pontos de vista variados, recuperando ecos dos mesmos acontecimentos no passado recente ou mais distante. Sua proposta é um exercício de reflexão sobre o mundo contemporâneo ligado às suas raízes no passado. Coisa de historiador? Talvez a intenção seja mostrar que esse exercício é válido para quem quer que seja...