domingo, 15 de novembro de 2009

A Alemanha Oriental por um alemão de Leipzig

A entrevista abaixo foi feita por mim ao meu amigo Martin Niepel, um alemão apaixonado pelo Brasil, na mesma semana dos vinte anos da queda do Muro de Berlim

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Martin Niepel, um alemão que fala português fluentemente, viveu sua infância na cidade de Leipzig, localizada então na República Democrática Alemã, nome oficial da Alemanha Oriental. Ele conta aqui como foi a sua infância vivendo sob o regime da Alemanha comunista quando nunca podia imaginar que conheceria o Brasil, país que diz "amar de coração".

Quantos anos você tinha quando caiu o Muro de Berlim? Qual lembrança mais marcante você têm desta data?

Eu tinha onze anos e a lembrança mais marcante foi que eu acordei neste dia, levantei da cama e liguei o rádio onde já davam a notícia de que o muro havia caído. Na mesma hora o meu pai entrou no apartamento dizendo "eu vou para o outro lado", porque uma parte da minha família morava na Alemanha Ocidental. Ele dizia "eu vou pedir o visto. Vou para lá urgente para visitar a minha mãe". Minha avó paterna havia fugido para lá já nos anos cinquenta.


E vocês tiveram algum problema por conta desta fuga?

Não. A Stasi (a polícia secreta da Alemanha Oriental) fez algumas perguntas mas muita gente fugiu naquela época então eles não nos importunaram. Quando a minha avó fugiu ela quis que meu pai fosse com ela, um tempo depois. Mas a minha bisavó, que na verdade criou e educou o meu pai, não permitiu. Para ela meu pai teria uma educação mais estável ficando no lado oriental. Minha mãe também, ao fazer uma visita ao outro lado, pensou em ficar mas desistiu da idéia por causa da família.

Vocês então tinham este contato na Alemanha Ocidental, após a fuga da sua avó?

Sim, mas só passamos a nos falar depois de alguns anos. Perdemos o contato e em 1986 a minha mãe conseguiu localizá-los e então passamos a nos corresponder. Apenas a minha mãe chegou a visitá-los do outro lado. O meu pai não chegou a ir nesta época pois não obteve a permissão para atravessar a fronteira.

Como era viver na Alemanha Oriental, para uma criança?

Era tranqüilo, pelo menos pra mim. Na verdade não tinhamos muitas preocupações. Eu fui para o kindergarten (jardim de infância) e depois para a escola. Tinhamos que entrar no Jungpioniere e Thälmann-Pioniere (organizações juvenis marxistas da Alemanha Oriental). De um modo geral, foi uma infância sem maiores problemas.

Ao falarmos sobre a vida nos países do "socialismo real" a maioria das pessoas se lembra sobre imagens na TV de filas para comprar alimentos ou gêneros de primeira necessidade. Você viu essa realidade de perto?

Sim, e até me lembro de um exemplo. Uma vez estavam vendendo pepinos e havia uma quantidade limitada por família. Uma senhora pediu para que eu comprasse dois pepinos para ela. Comprei os pepinos, voltei para casa e minha mãe me disse "estão vendendo pepinos, vamos descer para comprar". Ao chegarmos à mercearia a dona da loja não queria nos vender porque eu já havia comprado e alcançado a cota por família.

Alguns produtos eram mais demandados do que outros. Banana e laranja por exemplo. Na época do Natal havia fila para comprar laranjas.

A cidade de Leipzig ficou famosa por ter se tornado o centro das primeiras grandes manifestações contra a política da República Democrática Alemã que culmiram com a queda do Muro. Você se lembra dessas manifestações?

Sim, me lembro bem. Todas as segunda-feiras as pessoas iam para o centro da cidade e marchavam nas ruas manifestando-se contra o regime e dizendo que não dava mais para viver daquela maneira. Os meus pais participaram, mas nunca me levaram. Eles não se envolveram muito porque na verdade todos tinham medo. De fato, era perigoso.

Para vocês, nesta época, o que significava a Alemanha Ocidental?

Para todos nós significava "consumo". Podíamos ver pela TV as propagandas do outro lado do muro. Eu me lembro bem dos comerciais do chocolate Milka, da Coca-Cola e de outros produtos que não tínhamos como comprar. Vários produtos não podiam entrar na Alemanha Oriental e eu me lembro que até revistas eram confiscadas nos postos de fronteira.

Alguém da sua família ou alguém que você conhece foi investigado pela Stasi?

Eu não me lembro. Minha mãe me conta que meu avô materno, nos anos 60, foi procurado pela Stasi porque havia chamado um colega de "porco comunista". Ele foi interrogado e ficou preso por dois dias até que seus colegas testemunharam a seu favor e ele foi liberado, pois tinha duas filhas para criar.


Atualmente você vê muita diferença entre o lado ocidental e o lado oriental da Alemanha reunificada? Existe preconceito no oeste para com com os alemães do leste ou isso foi se diluindo nos 20 anos de reunificação?

Não, esse preconceito ainda existe. Como trabalho em uma empresa com pessoas de toda a parte do país sinto que ainda há este tratamento diferenciado. Nós, da Alemanha Oriental, somos mais fechados pois passamos muito tempo isolados do mundo. O lado ocidental já estava aberto ao mundo há muitos anos e por isso eles são mais flexíveis.

Em geral os ocidentais pensam que os orientais não gostam de trabalhar e são de uma parte mais pobre da Alemanha.


Com frequência vemos no notíciário que as manifestações neonazistas são maiores no lado oriental. Isso é verdade? Porque voce acha que isso acontece?

Eu acho que isso acontece tanto na parte oriental quanto na parte ocidental mas como somos uma parte menor do país, o foco da mídia está nesta região. Eu acho que essas manifestações neonazistas acontecem porque passamos muito tempo isolados. Não podíamos sair. Nós da Alemanha Oriental temos medo do que é novo. O povo é mais pobre, não há emprego, as indústrias faliram e os grupos neonazistas se aproveitam deste situação para atrair as pessoas.


A Alemanha passou pelo totalitarismo nazista, recuperou-se da guerra, superou a divisão interna e tornou-se uma das maiores economias do mundo. Atualmente os alemães são exemplo de superação e disciplina. Esse espírito pode diminuir as diferenças entre o leste e o oeste no futuro?

Eu acho que isso pode acontecer sim porque é um único país e foi assim antes e durante a guerra. Os anos da existência do Muro e a divisão foram apenas um episódio da História. Eu acho que as diferenças que ainda existem devem desaparecer em cinquenta anos.

O filme alemão "Adeus Lênin" ajudou a criar uma certa nostalgia pela Alemanha Oriental, fazendo ressurgir símbolos como o velho automóvel Trabant (o carro símbolo da RDA). Há algo deste época que você sente falta? Ou tudo isso está superado?

Para mim este tipo de nostalgia não existe. Se a Alemanha Oriental ainda existisse eu não teria a chance de aprender português e de ter vivido no Brasil por algum tempo. Isso só é bom para lembrar o que passou porém não devemos sentir saudade. Eu não tenho nenhuma vontade de viver aquele época novamente.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O velho Marx, quem diria, foi parar na Broadway...

Que o filósofo alemão estava na moda, todos já sabiam. No turbilhão do capitalismo em crise, liberais empedernidos reagem à reabilitação da fortuna crítica sobre o materialismo dialético enquanto marxistas vulgares pregam o fim do mundo ao estilo "nós avisamos!". No embalo dessa onda, produtores chineses aprontam um musical sobre "O Capital". Não deixa de ser interessante imaginar o "fetiche da mercadoria" e o conceito de "mais-valia" com fundo musical orquestrado. Não me surpreenderia que uma possível futura montagem norte-americana ganhasse o Tony. Quem, no frigir neoliberal dos anos 80, poderia prever essa possibilidade?

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ícone kitsch e eterno e único carisma

No documentário "Carmen Miranda - Banana is My Business", Helena Solberg faz referência a chegada da pequena notável em solo norte-americano: "Todos perceberam que a Grande Depressão acabara quando Carmen Miranda desembarcou em Nova York".
Se estivesse viva, a mais brasileira das portuguesas, Maria do Carmo Miranda da Cunha, faria 100 anos hoje. Já se escreveu muito sobre Carmen, e sua figura hipnotizante e icônica vale mais do que longos calhamaços. Apenas uma pesquisa no Google já oferece 1.080.000 resultados.
Carmen Miranda é um daqueles exemplos clássicos de como o nacionalismo ainda pulsa poderoso. Basta ler os comentários sobre seus vídeos no Youtube, onde brasileiros e portugueses se engalfinham para definir sua nacionalidade. Quando ela voltou dos EUA em 1940 acusaram-na de voltar "americanizada". Mesmo em sua morte, em 1955, havia quem ainda guardasse mágoa por sua brilhante carreira em Hollywood. E havia os que a enxergavam apenas como instrumento da política de boa vizinhança, ignorando seu genuíno talento. Ver a artista em cena é a melhor maneira de celebrar o inexplicável carisma que ela exerce, nitidamente brasileiro, mas livre de qualquer amarra:

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A Alemanha, o papa e a culpa histórica

Se o assunto é Holocausto, a Alemanha não titubeia. O peso do passado é uma lâmpada piscando para cada alemão em qualquer filme sobre o Auschwitz ou em informais conversas de bares e biergartens. No centro de Berlim, ao lado do Portão de Brandenburgo, um imenso memorial cumpre a função de lembrar os cidadãos o seu lúgubre passado recente. Talvez um pitoresco agricultor da Saxônia até sinta-se livre para expressar suas opiniões pessoais sobre racismo, xenofobia, nazismo e genocídio. Mas o governo alemão, desde que a guerra acabou, insiste em deixar claro: o Holocausto é um patrimônio de responsabilidade alemã, assim como é para os israelenses ou para os judeus da diáspora. Se a escravidão foi a chaga do Brasil, o genocídio da população judaica européia é o fardo eterno da nação alemã.
Foi no espírito dessa responsabilidade que a premiê Angela Merkel exortou o papa Bento XVI a deixar claro a posição sobre a negação do Holocausto. Joseph Ratzinger, alemão da Bavária, reabilitou o bispo Richard Williamson, que põe em dúvida a dimensão do extermínio dos judeus pela máquina nazista. Mais uma polêmica e mais gasolina na delicada relação entre o Vaticano e a comunidade judaica.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Fatos históricos no nascedouro:
A posse do primeiro presidente negro dos EUA

Barack Hussein Obama, havaiano, negro, advogado, filho do economista queniano Barack Obama e da antropóloga norte-americana Ann Duhnam tornou-se neste dia 20 de janeiro de 2009 o primeiro afro-descendente a ocupar a vaga política mais importante do mundo. Sem dúvida um lugar garantido nos manuais escolares de história e nas enciclopédias. Futuro nome de ruas, praças, fundações. Um fato histórico genuino, com todo cerimonial que lhe cabe. Obama tomando posse vale o quilate simbólico do discurso de Roosevelt em 1933, De Gaulle discursando do exílio, Reagan exortando Gorbachev a derrubar o muro de Berlim ou Lula recebendo a faixa de FHC no Brasil.
Os EUA vivem um momento único de ressaca econômica misturada com felicidade ansiosa por um tempo melhor. Obama sabe disso e tem aproveitado o momento como ninguém. A futura iconografia dos livros de história irão focar a elegante caminhada do presidente negro e sua esposa pela avenida Pensilvânia na fria tarde deste 20 de janeiro, ovacionado por uma multidão em visível alegria. Mas, nas páginas que ainda não foram escritas, como serão os anos Obama? Historiadores de hoje têm o privilégio de viver esses dias.

(Na foto, cidadãs de Nova York assistem, com um olhar quase incrédulo, a posse de Obama. Foto: Tristanbrand/Flickr)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Israel em Gaza ou defesa com massacres colaterais...

Se Edward Said, um dos maiores intelectuais palestinos do nosso tempo, estivesse vivo, certamente escreveria um longo artigo sobre a última e sangrenta ofensiva israelense na Faixa de Gaza. Sua observação perspicaz, com toda a coragem que só a liberdade da militância intelectual permite, apontaria as contradições de mais uma aventura militar israelense, que em nome da "defesa de sua cidadania" avança em mortes às centenas. Qualquer observador mais atuante saberia que as ações de Israel, iniciadas na calada do feriado de fim de ano, não resultaria em "apenas" dezenas de mortos. O saldo seria sangrento e bárbaro: homens, mulheres, velhos e crianças mortos, sob escombros. É fácil ser profeta quando se fala em ações do exército de Israel. Mais ainda no vácuo de poder americano e com às vésperas das eleições. Temerosos por sua segurança e influênciáveis pela retórica sionista, os israelenses votam de acordo com a severidade do seu exército. Os palestinos que elegeram o Hamas também votaram de acordo com a rudeza dos seus mais afiados extremistas.


Milhares sem casa, água, comida, remédios. Até a ONU, com seus ouvidos moucos e olhos míopes para a tragédia palestina, sentiu na carne a superioridade das "razões de Estado". Nos últimos dias do governo Bush, o governo de Ehud Olmert parece estar disposto a dar a sua última mostra de unilateralismo. Com Obama surgindo no horizonte, as liberdades de Israel não parecem tão possíveis assim. Quando Condollezza Rice se absteve de votar em uma moção contra o estado israelense na ONU o mundo notou que, mesmo em alianças estratégicas, tudo tem limite. Os foguetes do Hamas apavoram as populações de cidades israelenses. Mas usá-los como justificativa para bombardear escolas com mulheres e crianças parece longe demais da realidade para que a comunidade internacional aceite sem pensar. Existe um abismo de diferença entre a ansiedade por um provável ataque de míssil do Hamas sem direção e a certeza de uma chuva de bombas sobre uma densa área populosa. A imprensa internacional, mesmo que em uma parcela mínima, parece ter entendido a discrepância.

Pela primeira vez parece que o mundo reagiu à uma ofensiva de Israel com um pouco mais de clamor à favor dos palestinos. Longe do ranço do antissemitismo e com uma postura crítica, milhares sairam às ruas para pedir um basta. Os mais otimistas poderiam ver nisso uma guinada em direção a um entendimento maior sobre a realidade de milhares de pessoas, presas em campos de refugiados, vítimas de uma ocupação ilegal e irracional, que faz germinar o radicalismo e a violência dos ataques suicidas. Nessas horas, Edward Said é a melhor indicação para quem quer entender um pouco essa parte do mundo. Os palestinos clamam por serem também compreendidos em sua tragédia que já dura mais de 60 anos. Até brilhantes intelectuais israelenses sabem disso. Para os defensores do Hamas, ler Said é ter também um pouco mais de senso crítico, para dar mais sustentação à acusações e críticas