A entrevista abaixo foi feita por mim ao meu amigo Martin Niepel, um alemão apaixonado pelo Brasil, na mesma semana dos vinte anos da queda do Muro de Berlim
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Martin Niepel, um alemão que fala português fluentemente, viveu sua infância na cidade de Leipzig, localizada então na República Democrática Alemã, nome oficial da Alemanha Oriental. Ele conta aqui como foi a sua infância vivendo sob o regime da Alemanha comunista quando nunca podia imaginar que conheceria o Brasil, país que diz "amar de coração".
Eu tinha onze anos e a lembrança mais marcante foi que eu acordei neste dia, levantei da cama e liguei o rádio onde já davam a notícia de que o muro havia caído. Na mesma hora o meu pai entrou no apartamento dizendo "eu vou para o outro lado", porque uma parte da minha família morava na Alemanha Ocidental. Ele dizia "eu vou pedir o visto. Vou para lá urgente para visitar a minha mãe". Minha avó paterna havia fugido para lá já nos anos cinquenta.
E vocês tiveram algum problema por conta desta fuga?
Não. A Stasi (a polícia secreta da Alemanha Oriental) fez algumas perguntas mas muita gente fugiu naquela época então eles não nos importunaram. Quando a minha avó fugiu ela quis que meu pai fosse com ela, um tempo depois. Mas a minha bisavó, que na verdade criou e educou o meu pai, não permitiu. Para ela meu pai teria uma educação mais estável ficando no lado oriental. Minha mãe também, ao fazer uma visita ao outro lado, pensou em ficar mas desistiu da idéia por causa da família.
Vocês então tinham este contato na Alemanha Ocidental, após a fuga da sua avó?
Sim, mas só passamos a nos falar depois de alguns anos. Perdemos o contato e em 1986 a minha mãe conseguiu localizá-los e então passamos a nos corresponder. Apenas a minha mãe chegou a visitá-los do outro lado. O meu pai não chegou a ir nesta época pois não obteve a permissão para atravessar a fronteira.
Como era viver na Alemanha Oriental, para uma criança?
Era tranqüilo, pelo menos pra mim. Na verdade não tinhamos muitas preocupações. Eu fui para o kindergarten (jardim de infância) e depois para a escola. Tinhamos que entrar no Jungpioniere e Thälmann-Pioniere (organizações juvenis marxistas da Alemanha Oriental). De um modo geral, foi uma infância sem maiores problemas.
Ao falarmos sobre a vida nos países do "socialismo real" a maioria das pessoas se lembra sobre imagens na TV de filas para comprar alimentos ou gêneros de primeira necessidade. Você viu essa realidade de perto?
Sim, e até me lembro de um exemplo. Uma vez estavam vendendo pepinos e havia uma quantidade limitada por família. Uma senhora pediu para que eu comprasse dois pepinos para ela. Comprei os pepinos, voltei para casa e minha mãe me disse "estão vendendo pepinos, vamos descer para comprar". Ao chegarmos à mercearia a dona da loja não queria nos vender porque eu já havia comprado e alcançado a cota por família.
Alguns produtos eram mais demandados do que outros. Banana e laranja por exemplo. Na época do Natal havia fila para comprar laranjas.
A cidade de Leipzig ficou famosa por ter se tornado o centro das primeiras grandes manifestações contra a política da República Democrática Alemã que culmiram com a queda do Muro. Você se lembra dessas manifestações?
Sim, me lembro bem. Todas as segunda-feiras as pessoas iam para o centro da cidade e marchavam nas ruas manifestando-se contra o regime e dizendo que não dava mais para viver daquela maneira. Os meus pais participaram, mas nunca me levaram. Eles não se envolveram muito porque na verdade todos tinham medo. De fato, era perigoso.
Para vocês, nesta época, o que significava a Alemanha Ocidental?
Para todos nós significava "consumo". Podíamos ver pela TV as propagandas do outro lado do muro. Eu me lembro bem dos comerciais do chocolate Milka, da Coca-Cola e de outros produtos que não tínhamos como comprar. Vários produtos não podiam entrar na Alemanha Oriental e eu me lembro que até revistas eram confiscadas nos postos de fronteira.
Alguém da sua família ou alguém que você conhece foi investigado pela Stasi?
Eu não me lembro. Minha mãe me conta que meu avô materno, nos anos 60, foi procurado pela Stasi porque havia chamado um colega de "porco comunista". Ele foi interrogado e ficou preso por dois dias até que seus colegas testemunharam a seu favor e ele foi liberado, pois tinha duas filhas para criar.
Atualmente você vê muita diferença entre o lado ocidental e o lado oriental da Alemanha reunificada? Existe preconceito no oeste para com com os alemães do leste ou isso foi se diluindo nos 20 anos de reunificação?
Não, esse preconceito ainda existe. Como trabalho em uma empresa com pessoas de toda a parte do país sinto que ainda há este tratamento diferenciado. Nós, da Alemanha Oriental, somos mais fechados pois passamos muito tempo isolados do mundo. O lado ocidental já estava aberto ao mundo há muitos anos e por isso eles são mais flexíveis.
Em geral os ocidentais pensam que os orientais não gostam de trabalhar e são de uma parte mais pobre da Alemanha.
Com frequência vemos no notíciário que as manifestações neonazistas são maiores no lado oriental. Isso é verdade? Porque voce acha que isso acontece?
Eu acho que isso acontece tanto na parte oriental quanto na parte ocidental mas como somos uma parte menor do país, o foco da mídia está nesta região. Eu acho que essas manifestações neonazistas acontecem porque passamos muito tempo isolados. Não podíamos sair. Nós da Alemanha Oriental temos medo do que é novo. O povo é mais pobre, não há emprego, as indústrias faliram e os grupos neonazistas se aproveitam deste situação para atrair as pessoas.
A Alemanha passou pelo totalitarismo nazista, recuperou-se da guerra, superou a divisão interna e tornou-se uma das maiores economias do mundo. Atualmente os alemães são exemplo de superação e disciplina. Esse espírito pode diminuir as diferenças entre o leste e o oeste no futuro?
Eu acho que isso pode acontecer sim porque é um único país e foi assim antes e durante a guerra. Os anos da existência do Muro e a divisão foram apenas um episódio da História. Eu acho que as diferenças que ainda existem devem desaparecer em cinquenta anos.
Para mim este tipo de nostalgia não existe. Se a Alemanha Oriental ainda existisse eu não teria a chance de aprender português e de ter vivido no Brasil por algum tempo. Isso só é bom para lembrar o que passou porém não devemos sentir saudade. Eu não tenho nenhuma vontade de viver aquele época novamente.

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